Do Cafofo do Dezena - Crônica Viva - Desejos
A mulher na calçada, esperando Deus sabe o quê, aproximou-se da esquina e olhou para a rua transversal. Alguém precisa dizer-lhe que, em uma cidade como São Paulo, não se deve ficar exposta ao acaso.
Perigoso, muito perigoso, dizia meu pai. Cabelos soltos, negros, sobre o casaco que lhe cobria o corpo, deixava um resto de vento balançá-lo. Da minha janela, pensei em gritar, oferecer-lhe ajuda, se não gostaria de esperar no saguão do prédio. Calado, no escuro da sala, a observava. O carro parou, ela aproximou-se e entrou pela porta da frente. Pareceu-me não ser de aplicativo. Na penumbra da rua, avançado da hora, pude notar, através do vidro entreaberto, o rosto do homem.
Após o carro dobrar a esquina, distante de meus olhos, imaginei serem amantes. Sairiam para o jantar, depois o amor obrigatório. Quem sabe se ele lhe reservara alguma confissão, talvez ela o último encontro. Fatalismo dos apaixonados.
Não, não podemos mais nos encontrar, diria em lágrimas.
Ou, quem sabe, depois do beijo, ele juraria que a amava, que deixaria Rebeca, que se mudariam para a casa em Campos do Jordão. Quem sabe?
Na noite de quinta-feira, ficou esse pensar. A garrafa de vinho adormecida na adega pediu minha atenção. Comemoraria o encontro dos amantes, a desilusão, as brigas. Comemorar é deixar a mente em êxtase por qualquer assunto. Talvez a junção das palavras comer e amar. Não, meus amigos, não há nada de real nesta afirmação. Sou desgrudado da etimologia. Por ser escritor, tenho a obrigação de saber. Paciência.
No mais, o que quero mesmo é bater perna por este Recife. Andar de barco pelos canais, mesmo com a revolta de minha filha ao dizer que é um passeio 60+. Não tem problema, vamos para Olinda, quem sabe no Marco Zero, ou no forte pentagonal e, no final da tarde, com a garganta pedindo um suco gelado, acomode-me em um barzinho à beira-mar, em Boa Viagem. O que mais pedir da vida?
Depois, aquela mulher sob minha janela, neste momento, deve ter se resolvido. Sofre-se muito com amores inconclusos e a imaginação solta.
 
Fernando Dezena
enviar notíciaenviar informaçõesenviar foto comentarPerigoso, muito perigoso, dizia meu pai. Cabelos soltos, negros, sobre o casaco que lhe cobria o corpo, deixava um resto de vento balançá-lo. Da minha janela, pensei em gritar, oferecer-lhe ajuda, se não gostaria de esperar no saguão do prédio. Calado, no escuro da sala, a observava. O carro parou, ela aproximou-se e entrou pela porta da frente. Pareceu-me não ser de aplicativo. Na penumbra da rua, avançado da hora, pude notar, através do vidro entreaberto, o rosto do homem.
Após o carro dobrar a esquina, distante de meus olhos, imaginei serem amantes. Sairiam para o jantar, depois o amor obrigatório. Quem sabe se ele lhe reservara alguma confissão, talvez ela o último encontro. Fatalismo dos apaixonados.
Não, não podemos mais nos encontrar, diria em lágrimas.
Ou, quem sabe, depois do beijo, ele juraria que a amava, que deixaria Rebeca, que se mudariam para a casa em Campos do Jordão. Quem sabe?
Na noite de quinta-feira, ficou esse pensar. A garrafa de vinho adormecida na adega pediu minha atenção. Comemoraria o encontro dos amantes, a desilusão, as brigas. Comemorar é deixar a mente em êxtase por qualquer assunto. Talvez a junção das palavras comer e amar. Não, meus amigos, não há nada de real nesta afirmação. Sou desgrudado da etimologia. Por ser escritor, tenho a obrigação de saber. Paciência.
No mais, o que quero mesmo é bater perna por este Recife. Andar de barco pelos canais, mesmo com a revolta de minha filha ao dizer que é um passeio 60+. Não tem problema, vamos para Olinda, quem sabe no Marco Zero, ou no forte pentagonal e, no final da tarde, com a garganta pedindo um suco gelado, acomode-me em um barzinho à beira-mar, em Boa Viagem. O que mais pedir da vida?
Depois, aquela mulher sob minha janela, neste momento, deve ter se resolvido. Sofre-se muito com amores inconclusos e a imaginação solta.
 
Fernando Dezena
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