Do Cafofo do Dezena - Crônica Viva: Frio, Solidão e Leitura
Fazia tempo que não pegava um friozinho como o desta semana. Logo de manhãzinha, ao sair para o trabalho, a primeira pessoa que encontro é o porteiro do prédio, depois da Luciane e, às vezes, da Letícia, claro. Não que o Aloísio seja o porteiro, na verdade, é o zelador, tem dias em que faz duplo papel pelas férias, ou merecido descanso, de alguém. Fico me perguntando: o que um porteiro faz o dia todo? O prédio não é grande, treze andares e dois apartamentos por andar, logo, o movimento na portaria é pequeno. Para terem uma ideia, vezes há em que chego com o elevador e, horas depois, o danado está paradinho onde eu o deixei.
 
O que faz, então, o pobre homem durante as longas horas do dia? Se apreciasse uma boa leitura, poderia emprestar alguns livros da minha estimada biblioteca: Menalton Braff, o trio de Ricardos (Ramos, Fernandes e Viveiros), entre outras opções. Sei, podem dizer, livro não se empresta. Mas, diante da solidão do pobre homem, não há motivos para não o fazer. Certificando-me de passar as instruções para que, de forma alguma, o emprestado deixe os limites do prédio. Mesmo estando a leitura em um ponto de crucial revelação e o relógio do ponto gritar para abandonar seu posto, o livro não pode virar companheiro no metrô.
Estas preocupações invadiram meus pensamentos quando saía do prédio, na segunda-feira, desprotegido de minha melhor indumentária para os dias gelados: a boina. Não fazia ideia do que
me esperava.
- Tá um frio danado lá fora - alertou-me o Aloísio.
Depois do obrigatório bom dia, qual intrépido explorador polar, um verdadeiro Frederick Cook da Mooca, na busca do sustento de cada dia, subi o queixo, o nariz, e segui. À saída, porta aberta, uma rufada fina de vento bateu na minha orelha esquerda, correu pela calva, gelou o nariz e me fez, incontinente, olhar o mostrador de temperatura do relógio da rua: 7 graus. 'Ó Deus, onde estás que não respondes' Pensei em dar meia volta, subir ao apartamento, buscar vestes mais apropriadas: não. Continuei encolhido, pinto na roça em dia de chuva buscando as asas da mãe.
 
Cheguei ao carro, sentei-me, dei partida e liguei o ar quente.
Durante o dia, a temperatura subiu, mas pouco. Duas vezes, tive de sair e senti o mesmo ar gelado e o vento chato da manhã. Pensei no Aloísio e seu trabalho de apenas destravar a porta para parcas pessoas. Sempre os mesmos cumprimentos, os mesmos comentários sobre o frio, de como está dura a vida, e a secura de uma boa leitura. Depois, tenho consciência de que o frio é o mesmo para todos, os que leem ou não, na tranquilidade da portaria de um prédio na Mooca, ou no cooperativismo incompreendido pelos paulistanos. Menos aos desagasalhados. Aí a coisa pega e somente o padre Júlio para o socorro.
 
Fernando Dezena
Águas da Prata, SP, 01 de setembro de 2024.?
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O que faz, então, o pobre homem durante as longas horas do dia? Se apreciasse uma boa leitura, poderia emprestar alguns livros da minha estimada biblioteca: Menalton Braff, o trio de Ricardos (Ramos, Fernandes e Viveiros), entre outras opções. Sei, podem dizer, livro não se empresta. Mas, diante da solidão do pobre homem, não há motivos para não o fazer. Certificando-me de passar as instruções para que, de forma alguma, o emprestado deixe os limites do prédio. Mesmo estando a leitura em um ponto de crucial revelação e o relógio do ponto gritar para abandonar seu posto, o livro não pode virar companheiro no metrô.
Estas preocupações invadiram meus pensamentos quando saía do prédio, na segunda-feira, desprotegido de minha melhor indumentária para os dias gelados: a boina. Não fazia ideia do que
me esperava.
- Tá um frio danado lá fora - alertou-me o Aloísio.
Depois do obrigatório bom dia, qual intrépido explorador polar, um verdadeiro Frederick Cook da Mooca, na busca do sustento de cada dia, subi o queixo, o nariz, e segui. À saída, porta aberta, uma rufada fina de vento bateu na minha orelha esquerda, correu pela calva, gelou o nariz e me fez, incontinente, olhar o mostrador de temperatura do relógio da rua: 7 graus. 'Ó Deus, onde estás que não respondes' Pensei em dar meia volta, subir ao apartamento, buscar vestes mais apropriadas: não. Continuei encolhido, pinto na roça em dia de chuva buscando as asas da mãe.
 
Cheguei ao carro, sentei-me, dei partida e liguei o ar quente.
Durante o dia, a temperatura subiu, mas pouco. Duas vezes, tive de sair e senti o mesmo ar gelado e o vento chato da manhã. Pensei no Aloísio e seu trabalho de apenas destravar a porta para parcas pessoas. Sempre os mesmos cumprimentos, os mesmos comentários sobre o frio, de como está dura a vida, e a secura de uma boa leitura. Depois, tenho consciência de que o frio é o mesmo para todos, os que leem ou não, na tranquilidade da portaria de um prédio na Mooca, ou no cooperativismo incompreendido pelos paulistanos. Menos aos desagasalhados. Aí a coisa pega e somente o padre Júlio para o socorro.
 
Fernando Dezena
Águas da Prata, SP, 01 de setembro de 2024.?
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